quinta-feira, 31 de agosto de 2017
DRUMMOND E A MODA, EM POESIA
EU, ETIQUETA
"Em minha calça está grudado um
nome que não é meu de batismo ou
de cartório, um nome estranho ...
Meu blusão traz lembrete de
bebida que jamais pus na boca,
nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de
cigarro que não fumo, até hoje não
fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei mas
são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio,
meu chaveiro, minha gravata,
e cinto e escova e pente,
meu copo,minha xícara,
minha gravata e cinto e escova e
pente, meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidências
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio
itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que
a moda seja negar a minha
identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me
de ser eu que antes era e me
sabia
tão diverso de outros,
tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e
solidário com os outros
seres diversos e conscientes
de sua humana,
invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em
qualquer língua
(qualquer principalmente).
E nisto me comprazo,
tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá
- anúncio contratado.
Eu é que mimosamente
pago para anunciar,
para vender em bares,
festas, praias, pérgulas
piscinas
e bem à vista exibo
esta etiqueta global
no corpo que desiste de ser
veste e sandália de uma
essência tão viva,
independente,
que moda ou suborno algum
a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade
de escolher,
minhas idiossincrasias
tão pessoais,
tão minhas que no rosto
se espelhavam, e cada gesto,
cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido
sou gravado de forma
universal,
saio da estamparia,
não de casa,
da vitrina me tiram,
recolocam,
objeto pulsante
mas objeto
que se oferece
como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim,
tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo
industrial,
peço que meu nome
retifiquem.
Já não me convém
o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa,
coisamente."
Carlos Drummond de Andrade, extraído do livro "Corpo", Record, 1984.
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