terça-feira, 8 de abril de 2014

SOU UMA PIONEIRA

     "Quando menina gostava de desenhar e de fazer as roupas da minha boneca Suzie, que tinha um guarda-roupa com mais de duzentas peças, todas feitas por mim.
     Ao me formar no segundo grau, resolvi estudar Belas Artes na UFRJ, onde me especializei em restauração de papel. Aliás, só havia e só há no Brasil, dois tipos de estudo de restauração: papel ou pintura.
     Já formada, me matriculei em 1986, num curso de restauração de tecido, patrocinado pelo Senai  e pelo Pró-Memória (órgão extinto pelo Ministério da Cultura em 1989). A professora do curso veio do exterior, mais precisamente dos Estados Unidos. Ela trabalhava no Metropolitan Museum of Art. O curso, que teve duração de seis meses, era em horário integral e foi realizado no Senai,  Rio de Janeiro.
     Fiquei tão fascinada pelo assunto, que resolvi me especializar. Pedi -e consegui - uma bolsa de estudo no CNPQ para fazer mestrado em conservação e restauração em tecidos e indumentárias no FIT (Fashion Institute of Thecnology) que faz parte da Universidade do Estado de Nova York, EUA.
     O curso era de dois anos e meio. Acabei ficando por lá quatro anos, pois fiz estágio no  Metropolitan Museum of Art e depois, acabei trabalhando lá, como contratada. Fiz o maior número de trabalhos possíveis. Coloquei em prática os conhecimentos adquiridos no curso e, depois, voltei para o Brasil. Ao chegar, não encontrei trabalho, pois era uma especialista num ofício que não existia por aqui. Fui (e ainda sou) pioneira.
     Nos Estados Unidos vi peças do século XVI em perfeito estado. Todas recuperadas. No Brasil há peças do século XVIII  onde o tecido foi inteiramente comido pelas baratas e pelas traças. Ainda não existe, na nossa cultura, uma preocupação com a conservação do tecido. Na verdade, o brasileiro só valoriza restauração de pintura e de documentos. Roupa antiga, roupa de família, poucas pessoas vêem importância histórica na indumentária.
      Atualmente, eu tenho o meu atelier de restauração, que se chama "Maçaranduba, Conservação e Restauração de Arte", em Petrópolis, cidade onde moro. Falo duas linguas estrangeiras e ganho o mesmo que uma secretária. 
     Muita coisa se perdeu neste país muita coisa foi jogada fora, muita coisa importante foi perdida. Considero que a ignorância, a falta de profissionais especializados, nos levou a perder peças que eram memória viva da nossa história da indumentária. Mas a mentalidade, aos poucos, vai se modificando, para melhor. 
     Conquista-se um espaço aqui, outro acolá, à custa de muito esforço. Já fiz, para o  SESC -Belenzinho, SP, a restauração das roupas de um balé comemorativo, realizado em 1954. São roupas históricas, que foram desenhadas pelos pintores Di Cavalcanti e Lazar Segall.  Também fui responsável pela restauração têxtil do manto-estandarte do Artur Bispo do Rosário. Outro trabalho que fiz foi a recuperação da capa em tecido da escultura de São Jorge, criada por Alejadinho.
     Eu recupero qualquer tecido, recupero tapeçarias, bandeiras, mantos, capas, peças históricas. Já recuperei, por exemplo, dez roupas de  Carmem Miranda que estão expostas no museu que leva o seu nome, situado no bairro do Flamengo, RJ.
     Este trabalho de recuperação exige um grande conhecimento de tipos de tecidos, pois em cada época há um tipo de matéria-prima (tecido) diferente. E todo tecido, se não for tratado, acaba por morrer, pois se desidrata.
     Agora começo a receber, no meu atelier, algumas (ainda poucas) pessoas que desejam contratar os meus serviços para recuperar roupas antigas da família. Exemplos: um lenço da avó, uma roupa de batismo, etc.Uma vez, uma senhora me trouxe, para recuperar, uma roupa que ela tinha vestido aos três anos de idade. Eu restaurei  a roupa e ela a guardou, de lembrança.
     Mas há muitas peças históricas nacionais, como, por exemplo, as indumentárias dos escravos, os calções que as gestantes usavam antigamente, e muitas outras peças que marcaram épocas e que ninguém se preocupa em preservar. Milhares de peças foram abandonadas, morreram e, com elas, foi um pouco da nossa história. Já o Metropolitan Museum of Art (USA) tinha, em 1993, uma coleção de oitenta mil peças. Uma coisa fantástica! Acredito que atualmente tenham muito mais, pois estão sempre pesquisando, restaurando, catalogando e criando novas exposições onde são apresentadas peças que traduzem "a memória dos norte-americanos".
     Aqui, no Brasil, sinto falta de verba para a cultura, pois quando restaurei, por exemplo, a veste de coroação de D. Pedro II estava, na verdade, recuperando uma parte importante da nossa história."

  (palavras, depoimento de Claudia Regina Nunes - restauradora de tecidos - para o livro "Um negócio chamado Moda", escrito por mim, sob encomenda, para o Senac Nacional durante a primeira década do século XXI)                                                     
    

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