segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Zuzu Angel, eu sou a moda brasileira

Por Ruth Joffily

Não existem fronteiras entre a Zuzu-mulher e a Zuzu Angel-estilista, pioneira na busca e interpretação de um estilo nacional. Há uma coerência entre a pessoa (leia-se a mãe, a dona-de-casa) e a profissional. As duas são uma única pessoa: sólida, forte, batalhadora e, sobretudo, autêntica, pois sempre permaneceu fiel aos seus ideais e sonhos. E aí reside uma possível explicação para a sua maneira arrojada de se jogar por inteiro no que acreditava. E não poupou esforços: trabalhava noite e dia, sempre às voltas com a criação das suas coleções. Quando se fez necessário, remou contra a maré do pré-estabelecido, do aceitável.
Seu trabalho de criação se iniciava através da escolha das texturas dos tecidos. A partir daí, ela chegava à forma da roupa, sempre se preocupando em respeitar as formas do corpo feminino. Zuzu jamais rimava estética com dor, com apertos, com falta de ar, com um corpo "sufocado", incapaz de respirar. Zuzu rimava, como é moda agora, vestir com arte, vestir com design. Seu conceito sobre a roupa era arquitetural: o corpo era usado como a estrutura de um prédio. "Eu sigo e respeito, a estrutura dos ossos. No corte, na modelagem, cada estilista pode acrescentar ou tirar, aumentar ou diminuir, suavizar ou acentuar. O importante é que a harmonia seja mantida", afirmava Zuzu, que gostava de salientar que não criava roupas para manequins. Criava roupas para mulheres com carne, ossos, emoções e sonhos. Zuzu sustentava que a simplicidade na linha, bem modelada, e a simetria na forma eram a chave-mestra para uma silhueta distinta e elegante.
Desde o começo da sua carreira, se auto-denominava de "costureira", o que gerou um sentimento de respeito da sociedade (muitas vezes conservadora) com as costureiras, ontem e hoje presentes no cotidiano de muitas mulheres, de muitas famílias brasileiras. Zuzu-costureira alimentou-se dos assuntos, dos temas que o seu país lhe oferecia. Daí ter criado as coleções inspiradas em Marias Bonitas, Lampiões e em mulheres rendeiras. E mais: levou estas coleções para Nova York, onde, pela primeira vez, uma estilista nacional ocupou as vitrines da loja de departamento Bergdorf Goodman. E as jornalistas norte-americanas que entrevistaram Zuzu destacaram inclusive o uso, feito por Zuzu Angel, de pedras preciosas ora presentes em turbantes (um quê de Carmem Miranda, um quê de baiana, um quê das musas de Dorival Caymmi e Carybé), ora ocupando o espaço dos tradicionais botões em blusas e vestidos.
Zuzu-criadora tinha um "certo sentimento do mundo" e não estabelecia doutrinas tão absolutas que empobrecessem suas criações. Ela, sem dúvida, tinha um "sentimento íntimo" que a tornava uma mulher do seu tempo. Ela, ao se comprometer com a sua época, a transcendeu. Uniu "localistas" - leia-se artesões, rendeiras, bordadeiras - aos "universalistas - antecipou, sem dúvida, a moda globalizada, que necessita hoje, mais do que nunca, ter um quê local, um quê nacional.
Antecipou, em quase meio século, a união, no Brasil, do artesanato à moda industrial. Chegou a este caminho ao iniciar, como pioneira que foi, uma adaptação da moda internacional à realidade nacional, ao mesmo tempo que fazia o caminho inverso: levou o espírito e os princípios da cultura popular, do folclore, da criatividade das mulheres rendeiras para o exterior. Ela derrubou fronteiras e antecipou, literalmente no século passado, a aproximação eclética, no Brasil, da moda com o design.
Idealista, sonhadora, tinha a cabeça nas nuvens e os dois pés no chão: criava peças originalíssimas, mas gostava de vender. E precisava vender. Era a chefe de família, tinha três filhos para educar, orientar. Enfim, tinha três filhos que criou para o mundo. Zuzu, como muitas mulheres inteligentes, ousadas e criativas não foi compreendida no Brasil, na época em que viveu. Era uma mulher que combinava força, tenacidade e uma certa ternura.
Necessitou andar sozinha, após ter se separado do pai dos seus filhos. Foi admirada por muitos homens, mas não amada. Ao longo do jogo da vida perdeu a felicidade, ao não aceitar o terrível assassinato do seu jovem, sonhador e idealista filho Stuart, que expressou o sentimento de uma geração belíssima, que sonhou em melhorar as relações entre os "homens de boa vontade" e diminuir as terríveis desigualdades sociais que ainda hoje fazem o Brasil viver preso ao medo. Para os conservadores, seu filho era um "comunista". Para Zuzu seu filho Stuart era, como os jovens de sua geração, um humanista como ensinam nas Santas Escrituras. Para denunciar sua morte, não usou o verbo. Para Zuzu Angel, o verbo tira o sabor, o gosto, o prazer do ato. Conclusão: entrou para a história da moda nacional e internacional ao ser a primeira estilista a utilizar uma estamparia exclusiva (com anjos, do seu sobrenome Angel, anjos caídos, anjos feridos, anjos esquartejados) para fazer a denúncia do assassinato de um inocente, de um jovem idealista, que hoje faz, como ela, falta numa realidade cotidiana, neste início do século XXI, onde a fama, o poder e o dinheiro aparecem como valor mais cultuado nos altares de narciso.
E vale destacar que a matéria-prima de Zuzu Angel foi a solidariedade, a coragem pessoal, e o altruísmo, sobretudo, tinha e expressava um compromisso com o público: vestiu estrelas nacionais e internacionais, mas também vestiu mulheres comuns: adotou, precocemente no Brasil, o estilo de peças coordenadas, simplificou os guarda-roupas rebuscados, "embabadados", "peruados". Impregnada de saber, de cultura, Zuzu, porém, não deixava que as convenções a limitassem. Sabia que direita e esquerda eram argumentos fáceis de serem interpretados e de, sobretudo, serem explorados, como são atualmente, nesta indústria (cultural, política, econômica etc.) de marcas e nomes. E sabia também que o vestir, assim como o ler, o ouvir uma música, o ir ao cinema o ver um programa na televisão, são uma pausa, uma interrupção da nossa vida cotidiana, uma suspensão da realidade. Pois ela, a realidade, é sempre dura demais para ser encarada em tempo integral. Daí a gente gosta de voar de vez em quando. E ela, sábia, foi pioneira, foi a primeira a dar asas para a moda nacional poder voar, e alcançar outros continentes. Obrigada, Zuzu!

Rose Marie Muraro, esta é a mulher!

Por: Ruth Joffily* O título da biografia de Rose Marie Muraro ("Memórias de uma mulher impossível", editora Rosa dos Tempos) é chamativo e atraente. Assim também pensou a passageira de um ônibus circular da cidade do Rio de Janeiro que, ao ver o livro no meu colo, não se conteve e pediu para dar uma olhada. "Gostei muito do título," me disse a tal passageira. "Levo uma vida difícil. Sou funcionária pública, salário congelado há anos, e ainda tenho dois filhos para criar ..." Ao ouvir esta desconhecida fazer o seu desabafo, lembrei-me que o livro da Rose foi definido, pela jornalista Elizabeth Orisini, em reportagem publicada no jornal "O Globo"como um "libelo contra a opressão". E é a pura verdade, pois neste livro a autora conta toda a sua vida e mostra como conseguiu vencer a cegueira (nasceu cega, com uma vista enxerga apenas 5% e com a outra não enxerga nada) e a morte. Na infância, Rose Marie teve septicemia no primeiro ano de vida e, posteriormente, reumatóide, tendo que reaprender a andar. A vida de Rose, portanto, não foi um "mar de rosas". Pelo contrário, ela teve que enfrentar, desde cedo, sérias doenças, além de uma gravíssima deficiência visual que não a impediu a aprender a ler. Mas Rose foi muito além: tornou-se uma escritora e uma editora de sucesso. E como ela conseguiu isto? "Mirei-me no exemplo de quem vive de salário mínimo e sobrevive ... E eu sobrevivi, como eles, porque não vivi dentro do possível." Rose sempre fez apostas no impossível... "E eu aos cinco anos, embora inconsciente e infantil, fiz uma aposta no impossível e aprendi a ler, apesar do médico da minha família ter dito, à minha mãe, que eu deveria deixar de ir à escola, pois não iria aprender a ler, em função de ser "cegueta". A convivência, desde a infância, com sérias limitações fez de Rose Marie uma mulher muito especial. Tão especial que ela dispensa a felicidade, sentimento que a maioria das pessoas busca freneticamente, como se não pudesse viver sem ela. Rose, remando contra a maré do estabelecido, considera que a felicidade é burra. "Entender o mundo também é uma maneira de vê-lo. Concordo com Toni Morrison, que ganhou o prêmio Nobel, quando ela diz que a felicidade é a procura de uma totalidade que só acontece com as pessoas que não foram felizes. Para ela, ser feliz é muito chato e muito pouco, porque fecha o ser humano para a totalidade que é a ordem e a desordem, felicidade e infelicidade. No meu caso, se eu quisesse ser feliz, não teria a vida "tão estranha" que tive, teria me acomodado na felicidade", afirma Rose na sua entrevista ao caderno "Prosa e Verso" do jornal O Globo. Trocando em miúdos, a inquietação gera a abertura para a criação. E para Rose Marie Muraro só o "impossível abre o novo. Só o impossível cria. "Daí ela ter dito que aprendeu a ter prazer em viver o impossível observando quem vive com o salário mínimo no Brasil: a sobrevivência depende de vencer milhões de obstáculos, preconceitos, discriminação e, depende, também, de muita criatividade, inclusive na hora de se alimentar. Não é à toa que foi publicada (no dia 2 do corrente) uma reportagem no jornal O Globo cujo título é: "Deputados procuram favelados". E no texto da reportagem é dito que "dois deputados federais subiram o morro do Andaraí, na zona norte do Rio de Janeiro, para saber como uma família vive com R$ 136,00 (...)" Trata-se realmente de um milagre, que vem acontecendo no Brasil há bastante tempo. E o segredo desta teimosa sobrevivência de quem recebe, literalmente, o mínimo em remuneração e em direitos como cidadão está neste "viver a impossibilidade" conforme afirma Rose Marie. Vale à pena ler a biografia desta feminista consagrada, desta mulher realmente extraordinária, que merece a nossa sincera admiração.