segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

MORRE UMA TRABALHADORA DA MODA


          Marilia Valls: um trabalho sobre moda, livro que escrevi ,junto com  Luiz Antonio Aguiar, é um pequeno e rápido retrato da vida e das lutas da estilista Marilia Valls.
   No título colocamos a palavra trabalho, porque "a moda é aquela coisa meio sonho, muito consumo, respondendo com cores e formas aos diversos aspectos do desejo; desejo que, no mais das vezes, cria na medida do que pode corresponder. É o seu marketing, seu fascínio, sua displicência, sua irresponsabilidade posada em fotos - seu look pink, como diz a própria Marília. 
              Mas moda é também - que ninguém nos ouça - TRABALHO! É o ganha-pão de um número incontável de profissionais, em diversas áreas. É a dureza de montar coleções, desde a escolha do que vai se lançar à organização dos desfiles e apresentações.
        Marilia, como muitas mulheres brasileiras, através da moda, entrou no mercado de trabalho. Mas do que isso, nesse mercado fez uma carreira brilhante. Graças à sua formação, ao seu bom-gosto ... sem dúvida. Mas graças, principalmente, ao seu esforço e trabalho.
     
  
       "Marilia Valls: um trabalho sobre moda" é um título em duplo sentido. Tanto pelo conteúdo deste livro quanto pelo seu tema ou pelo seu personagem central. No tenho dúvidas de que escrevê-lo foi me envolver bastante - implicando aí consequências contraditórias - com minha biografada. É antes de tudo uma versão da mulher, acompanhada da tentativa de apresentar como pano de funo a moda no Brasil neste período, sua importância social e cultural."
         O livro, editado pela Salamandra, em 1989, vendeu pouco,muito pouco. Ficou longe, muito longe de ser um best-seller no Brasil e jamais foi traduzido para outra lingua. 
Mas ao escrevê-lo com Luiz Antonio Aguiar, eu realizei um sonho: apresentar a moda nacional além da sua imagem de glamour e frescura que tanto era cultuada, na época. 
E jamais vou me esquecer de Marilia me contando como entrou na moda: "meu casamento não deu certo, resolvi me separar numa época que sequer havia divorcio no Brasil." 
        O seu ex-marido e pai das suas filhas a deixou desamparada, ela que havia estudado em um colégio de freiras, mas precisamente, no então "Sacre-Coeur de Marie". Lá, como aluna interna, Marilia aprendeu a costurar, a bordar, lições que eram dadas para tornar as alunas  boas donas-de-casa, esposas submissas e mães. Pois bem Marilia, ao se ver abandonada pelo pai das suas filhas, usou a costura que lhe havia sido ensinado para a domesticar, na sua força de libertação. 
Palavras de Marilia Valls: "quando se é mordida por uma cobra, a cura vem através de um soro que é fabricado com o próprio veneno da cobra. Então, o que escraviza, também pode ser a porta para a libertação." Linda Marilia.
   Noite de domingo (11/02/2018) para segunda-feira, acordei de madrugada, perdi o sono e fui ler. Fui exatamente ler um artigo escrito por Daniel Salles (revista Eu & o fim de semana - jornal Valor, edição 9 de fevereiro de 2018) sobre o último livro de Luiz Rufffato, escritor que valoriza, ao escrever, personagens que trabalham, pois afirma, com razão "que o trabalho ocupa um espaço enorme da vida das pessoas. (...) É por isso que meus personagens ou estão no batente ou falando sobre isso."
E eu estava lendo sobre os personagens de Rufatto, sua visão sobre a importância do trabalho para homens e mulheres, e me lembrei da Marilia Valls, uma mulher que se fez ao transformar os ensinamentos de docilidade feminina em força feminina. E, no meio da minha leitura, de manhã cedo, tocou o telefone na minha casa. Era a jornalista Celina de Farias, vice-presidente do Instituto Zuzu Angel,  para me comunicar o falecimento de Marilia Valls, em quem eu estava pensando desde o amanhecer daquela segunda-feira de carnaval, dia 12 de fevereiro. Comprei o jornal "O Globo" onde há apenas um anuncio pago pela família, comunicando a cremação de Marilia  que foi hoje às  13 horas. Mas no  Segundo Caderno, página 6, há uma reportagem de meia página com o seu companheiro, hoje o célebre pintor/artista plástico Eduardo Sued. Generosa Marilia Valls: deu condições de Sued desenvolver um trabalho consagrado, mundialmente. E ele, como seu companheiro inseparável, foi quem criou as primeiras estampas das blusas que Marilia Valls começou a vender na Blu-Blu, marca que se tornou um ícone da moda carioca, no século XX. Vá em paz, companheira de trabalho, você cumpriu todas as suas missões. Meu beijo e carinho, admiração pela sua coragem, rebeldia, luta, obstinação, talento e criatividade, a toda prova.  
     
     Em Tempo:Marilia Valls deixa agora vaga a cadeira número 07 da Academia Brasileira da Moda (ABM), cujo patrono é J. Carlos. 

Abaixo, entrevista assinada pelo jornalista Nelson Gobbi com Eduardo Sued,marido de Marilia e companheiro na vida e no trabalho, publicada no jornal O Globo do dia 12 de fevereiro de 2018, edição onde também foi publicado o anúncio fúnebre. Falta ser publicada uma reportagem sobre este ícone da moda carioca e brasileira.
  

Um comentário:

  1. uma dívida da imprensa. machismo e falta de sensibilidade... comemos tudo, mas diferente do antropofagismo, ficamos cheios de gases e geramos só o improdutivo, consumo, consumo, consumo. assim, não crescemos... é falta de competência? teriam chamado alguém de sua alçada para escrever - brilhantemente - sobre a senhora, que eu, estudante de moda e ávido por conhecimento, tenho por suas mãos e tato o privilégio de conhecer... e tantos outros, que não tiveram/terão? =/ triste, muito triste esse desserviço midiatico seletivo míope. obrigado minha mestre e amiga querida! beijos!

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