sexta-feira, 3 de outubro de 2014

UMA VEZ ZUZU, SEMPRE ZUZU





    Pode-se dizer que há dois Brasis: um antes de Zuzu (A.Z) e outro  depois de Zuzu (D.Z), O primeiro Brasil era conhecido no exterior principalmente pelo café, Copacabana, Pelé, futebol e carnaval. Mas essa mineira nascida há 75 anos na cidade de Curvelo : conseguiu, nos anos 60, o que até então nenhum costureiro brasileiro conquistara: páginas inteiras em grandes jornais norte-americanos como The New York Times e The New York Post. Zuleika (Zuzu) Angel Jones exportou muito dos seus modelos made in Brazil para os Estados Unidos, competindo de forma amplamente vitoriosa no sofisticado campo de moda internacional.
    


     Ao criar seus modelos, Zuzu dizia: "Gosto que a mulher fale, que se expresse." E isto incomodava a sociedade numa época em que a mulher não tinha voz própria. Era o homem, o costureiro, quem falava e impunha seus desejos e sua estética à sua clientela  feminina. Parênteses: até 1962, ano em que foram aprovadas mudanças no Código Civil (lei 4121) criada pela advogada Romy Medeiros) a mulher brasileira não podia viajar e nem ter conta em banco ou fazer uma cesariana sem autorização do marido que era, legalmente, dono do destino da mulher. E Zuzu não foi uma Tiradentes, mas realizou sua revolução contra a submissão e gostava de afirmar: "Os costureiros homens masculinizaram a mulher. Mas quando se diz , no Brasil, costureiro, o que se visualiza? Um criador, um artista. Já a costureira, o que se visualiza? Uma mulher debruçada sobre uma máquina, que faz modelinhos ao gosto do freguês, enfim uma coitadinha ..." Ao questionar como uma guerreira de Minas Gerais os valores estabelecidos, Zuzu se definia como "uma simples costureira de Curvelo", preenchia, em documentos oficiais, o item profissão com a palavra costureira e achava graça no espanto das pessoas quando afirmava ser essa a sua profissão. Zuzu nunca  se definiu como uma estilista, função que, então, inexistia e termo que nem constava dos nossos dicionários. Em seu depoimento ao Conselho Nacional das Mulheres, em 1972, declarou: "o desprestígio, a despersonalização da mulher são tão grandes que, em se tratando de trabalho profissional, basta mudar o gênero feminino para o masculino e a profissão sobe de nível e se transforma em algo de valor."

     Zuzu Angel também insubordinou-se contra a colonização cultural que tornava, na época, o modo de vestir brasileiro uma mera cópia dos modelos lançados em Paris. Nas palavras de Heloisa Lustosa (ex-diretora do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro) - "Zuzu fez sózinha uma semana de 1922 na moda." Heloisa, alás, gosta de comparar Zuzu Angel com suas tesouras, linhas e agulhas revolucionárias ao não menos revolucionários pincéis, tintas e telas de Tarsila de Amaral. Ambas tinham um forte sentido de brasilidade. Na obra da célebre pintora, ativa participante da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo no ano de 1922, que revolucionou os conceitos artísticos nacionais, esse instinto de nacionalidade está nas famosas cores caipiras como, por exemplo, o amarelo
     Nas criações de Zuzu Angel, a brasilidade etá na mistura de matérias-primas: no patchwork de renda cearense, na união da chita com a renda nordestina, no xadrez com os pois, dos estampados díspares e nas originais estampas de pássaros e borboletas, motivos tão tropicais e criativos, feitos numa época em que as questões ecológicas ainda não estavam na moda ou no discurso das pessoas, ou de pequenos anjinhos, inspirados pelo seu sobrenome norte-americano.
     Zuzu viajou pela primeira vez ao exterior exatamente nos anos 60, quando começou a exportar roupas. "O que mamãe fazia era diferente, porque ela não copiava Paris, Londres ou Nova Yorque. Ela nunca viajou para ver uma vitrine, para copiar uma tendência: assumia sua nacionalidade, suas raízes, sua simplicidade", afirma Hildegard Angel. 
     Zuzu foi tão inovadora que seus anjos e seus patchworks em renda acabaram sendo copiados por Féraud, Valentino, Cacharel, célebres estilistas europeus. Ou seja, ela alcançou seus objetivos profissionais: foi criadora de uma moda brasileira, respeitada e até copiada no exterior. Em depoimento a Romy Medeiros, presidente do Conselho Nacional das mulheres, Zuzu afirmou: "Estou reivindicando para nós , isto é, para a moda brasileira e para as tecelagens nacionais, o mesmo respeito e categoria que recebem os nossos concorrentes internacionais. "Em 1968 Zuleika Angel Jones recebeu uma homenagem especial. Foi eleita - junto com a atriz Bibi Ferreira e a escritora Rachel de Queiroz - Mulher do Ano, prêmio concedido pelo Conselho Nacional das Mulheres às cidadãs que são um exemplo para seus semelhantes.
      A paixão que tinha pelo seu trabalho e pelo seu país levou Zuzu a conquistar, em 1970, um espaço internacional para as suas mais novas criações. Lampiões, Marias Bonitas e mulheres rendeiras ocuparam vitrines da loja de departamento Bergdorf Goodman, em Nova York. Em reportagem publicada no New York Times em 15 de novembro de 1970, a jornalista Bernadine Morris refere-se às mulheres rendeiras como rendidras, compara Lampião e Maria Bonita a Bonnie e Clyde, destaca o uso, feito por Zuzu, de predras preciosas em turbantes ou ocupando o espaço dos tradicionais botões em blusas e vestido. Morris abriu espaço e aspas para as lúcidas declarações de uma criadora de moda que vivia à frente do seu tempo: "No meu país, eles acham que a moda é frivolidade, futilidade. Eu tento lhes dizer que moda é comunicação, além de garantir emprego pra muita gente." Essa afirmação permanece atual. Não foi à toa que Hildegard Angel afirmou: "olha eu vejo a moda e acho que mamãe,hoje, no Brasil ainda é vanguarda. Ela era muito corajosa."
     E tinha visão do futuro. Em 1967 , Zuzu já fazia peças de roupas em série, o prêt-à-porter e não apenas modelos exclusivos. Sua clientela, a principio, estranhou o sistema de escolher um modelo já pronto e não ter que encomendar, como era de costume. Depois, todas elas se acostumaram. E Zuzu continuou, como diz Hildegard, "com a cabeça fervilhando ...."
     Passou a dividir sua coleção em dois grupos. Um para o dia-a-dia, composto de vestidos e conjuntos práticos, para a mulher ativa, que trabalha fora, uma consumidora que Zuzu admirava. O segundo grupo, que ela batizou de Holiday, reunia os vestidos mais sofisticados, em seda, organzas, crepes, rendas ou rendões, ideais para festas ou ocasiões especiais. Em 1969, Zuzu conheceu a atriz Joan Crawford, que se tornou uma de suas freguesas mais fiéis e passou a figurar na lista das clientes-personalidades de que já constavam nomes como os de Yolanda Costa e Silva, Helô Amado, Heloisa Lustosa, Kim Novak, Margot Fonteyen, Lisa Minelli, todas fascinadas pela originalidade de Zuzu.
     A fecundidade de sua criação e uma constante qualidade de acabamento também caracterizaram os vestidos de noiva que ela concebeu, a maior parte deles em crepe ou organdi, detalhados por bordados do Ceará (coloridos ou brancos) ou em seda com aplicação de renda ou rendões nordestinos. E foi audaciosa ao criar um vestido de noiva com calça comprida ...! Zuzu sempre fez moda brasileira, calçada nas coisas do Brasil. Ela gostava de tingir rendas, dando-lhes cores inusitadas" diz Helô Amado, que recorda como Zuzu apreciava vestir uma mulher feminina, respeitando as formas do seu corpo. A mulher-tábua, super-magra, não encantava Zuzu que gostava sim, da mulher com busto e bumbum.
     Para Ethel Moura Costa, proprietária da etiqueta Bijou-Box e vizinha de Zuzu em Ipanema nos anos 60 e 70, "ela tinha um processo de criação diferente de todos os estilistas. Lembro-me de uma vez que cheguei na sua casa, na rua Nascimento Silva, ela estava absorta, misturando amostras de tecidos estampados, misturando xadrez com bordado inglês. Olhei aquele "caldeirão da bruxa" preocupada com o que ia sair. Zuzu percebeu que eu estava receosa e disse: "não fique apreensiva, Ethel, vai dar tudo certo."
     Mas quando seu filho, Stuart Angel Jones, desapareceu e foi assassinado nas prisões da ditadura militar, aquela mulher valente, audaciosa, corajosa, que enfrentava qualquer parada, se viu impotente. Apesar de muito bem relacionada, andava às cegas e não conseguiu sequer um esclarecimento e nenhum apoio de generais, ministros e políticos do alto escalão do governo Emilio Garrastazu Médici. A busca desesperada, mesmo obsessiva de Zuzu Angel pelo corpo do seu Tute, apelido familiar de Studart a levou, inclusive, a criar um visual denúncia, sendo, bem como afirmou o  escritor e jornalista Zuenir Ventura "precursora das locas de la plaza de mayo: passou a se vestir toda de preto, com uma echarpe de organza cobrindo os cabelos, um anjo nú rodeado por flores (uma criação de Isidro) ornamentando o seu colo e na cintura, muitas cruzes, de todos os tamanhos, o símbolo do martírio de Jesus Cristo, reflexo de seu martírio de mãe, reflexo da sua via sacra, da sua peregrinação, sem pausa e sem temor, em busca do corpo do seu amado filho Stuart.
     Em 1984, Walter Salles Júnior quis fazer um filme sobre Zuzu e encomendou o roteiro ao chileno Jorge Durán. E este roteiro, baseado em fatos reais, é emocionante. Há uma cena em que a personagem de Zuzu indaga a um  general: "Onde atiraram o corpo do meu filho? e a seguir começa a recitar a carta enviada pelo ex-preso político Alex Polari que relata a morte de Stuart, e que ela Zuzu, sabia de cor. "Na mesma noite fui torturado ao lado de Stuart, na base aérea do Galeão. Stuart foi arrastado de um lado para o outro, seu corpo foi esfolado, amarrado a um jeep (..) ele esforçado a aspirar os gases tóxicos do veículo, o cano de descarga enfiado na boca" Numa outra cena, a personagem Zuzu diz: "estou pedindo o corpo do meu filho. Fui criada para associar a morte a um enterro. Meu filho era moço, forte, idealista, morreu como um cão. Quero lhe dar um enterro de gente."
     A atriz-transformista Rogéria, que conheceu Zuzu em 1973 e ficou sua amiga, diz que "chorou muito com ela, e acompanhou sua luta para denunciar a "sacanagem que fizeram com o filho dela". E lança uma advertência: "é necessário qu Zuzu não seja esquecida. Mas o Brasil tem memória curta, vive se esquecendo de tudo e de todos." Já a estilista carioca Celina Ballona, dona da grife "Cenário e Figurino", afirma que "o talento de Zuzu era inegável. Quando se pensa na audácia de concorrer com a Sétima Avenida de Nova York e com a moda européia ...!" Celina é fascinada pela delicadeza dos anjinhos de Zuzu e o "contraponto de seus tanques de guerra com flores, que até hoje nos fazem chorar."
     Anjos machucados, anjos feridos, anjos e tanques de guerra e manchas vermelhas, foram os motivos das estampas criadas por Zuzu Angel para denunciar em um desfile que realizou no consulado do Brasil em Nova York, em 1971, o assassinato do seu filho Stuart pelo governo militar chefiado por Emilio Garrastazu Médici. Essa foi a primeira moda-política que se tem notícia. Nela o humor e o trágico se combinavam. Zuzu incomodou muitas autoridades nacionais, com as denúncias políticas que fez no exterior, mais precisamente nos E.U.A, país onde nasceu seu ex-marido e pai de de seus três filhos:Stuart, Hildegard e Ana Cristina. Quando voltou ao Brasil, após ter deixado relatórios sobre a morte de Stuart na ONU e no senado norte-americano, Zuzu começou a ser seguida, a receber ameaças pelo telefone e teve a sua única loja, localizada no Leblon (zona sul do Rio de Janeiro), incendiada. Tudo indica que sua morte em 1976 foi um assassinato com motivações política, assim está no roteiro do possível filme sobre sua vida, assim pensam duas eminentes feministas, a escritora Rose Marie Muraro e a deputada estadual Heloneida Studart, que conviveram, de perto, com Zuzu.
     No roteiro de Jorge Durán, há uma cena em que a personagem de Zuzu diz: "Destroem tantas coisas. Mas nunca destroem tudo. E o que fica quase sempre é o melhor, o mais forte, o que foi feito para durar sempre." Você, Zuzu-mulher, Zuzu-mãe, Zuzu-costureira, Zuzu-criadora de uma moda brasileira a disputar espaço no exterior, ficou para sempre em nossos corações e mentes. Antes de morrer, você, Zuzu, fez uma última coleção internacional que se chamou  Once Zuzu, Always Zuzu, e foi um presságio , uma intuição do que estava para acontecer.

   (Texto que escrevi na última década do século XX para uma exposição sobre Zuzu Angel)  
     


















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