sábado, 22 de março de 2014

CORPO, MODA, FEMININO Por Ruth Joffily

     Na cidade do Rio de Janeiro, com a sua atual violência urbana e descaso do governo (estadual e municipal) com as ruas, avenidas, praças públicas, nos leva a enfrentar "buracos" - pequenos, médios e grandes - nas calçadas, além de degraus altos demais nos ônibus que andam correndo, "driblando" o trânsito, "jogando" com os passageiros, sobretudo quando dão freadas bruscas.
     As mulheres que andam, por necessidade de sobrevivência, de ônibus no Rio de Janeiro não abrem mão, por exemplo, dos saltos altíssimos e nem das roupas (sobretudo saias e calças/leggings) justíssimas, agarradas ao corpo, em tecidos sintéticos, pouco adequados ao clima quentíssimo do nosso verão tropical. Ainda há aquelas que vão mais além: colocam vestido, saia ou calça justíssimos, sapatos plataforma altíssimos e ainda aderem  à moda do "mega-hair", acrescentando longas madeixas aos seus cabelos naturais. Para mim, essa mulher sofre como sofriam as suas antepassadas. Antes, o espartilho, a cinta, a cinta-liga; agora, as calças com ganchos curtos, tipo "espartilho da bunda".
     A mídia continua proclamando padrões de beleza e sensualidade irreais para a maioria das pessoas. Chega a transformar a sexualidade numa atividade similar às competições atléticas. E as consumidoras tentam seguir esses padrões irreais, que pouco têm a ver com o seu dia-a-dia.
     Há um Brasil real que está longe, muito longe, do Brasil oficial. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que uma mulher da elite se sujeitar a passar pelo "cativeiro" do transporte de massa (sobretudo ônibus e trem para o subúrbio. Mas dá para incluir também o metrô do Rio de Janeiro e de São Paulo no horário de pique e quando há mudança de linha, pois se fica lá na estação, esperando, esperando ...) Como a beleza necessita seguir ainda um (rígido) padrão estético, a maioria das mulheres se sujeita a vestir roupas cuja modelagem e tecido não se adapta ao nosso clima e, sobretudo, à nossa realidade urbana. E elas também se sujeitam a calçar sapatos que não se adaptam aos seus pés.
     Será que algo mudou? Continuamos sem ter uma modelagem nacional. Trocando em miúdos, entrevistei uma modelista profissional, a Sonia Duarte, professora de modelagem , desde 1991, na Escola de moda Cândido Mendes e na Universidade Veiga de Almeida (Campus Tijuca e Barra da Tijuca, RJ) e descobri que continuamos, no Brasil, sem um padrão de modelagem nacional.  Cada fábrica, cada etiqueta, cada grife, cada marca segue um tipo de modelagem. Ainda não estudamos o biótipo do (a) brasileiro (a). E o que existe em modelagem é importado ou copiado do estrangeiro, como podemos constatar através do depoimento que me foi dado pela Sonia Duarte, professora de modelagem e co-autora do livro "Modelagem Industrial Brasileira", editora Letras & Expressões, Rj, 1998)
     "Aos 9 anos eu já cortava e costurava as minhas roupas, pois não queria ir à costureira. Gostava de fazer sozinha o que eu ia vestir. Nesta época eu morava na casa de um tio-avô, que havia criado minha mãe, desde a morte dos meus avós. E esse tio tinha, dentro da casa dele, um atelier onde costurava, sobretudo camisas masculinas e cuecas samba-canção. Suas camisas eram sempre de tricoline, popeline e opala. Eu gostava de ficar num canto, de cócoras, observando ele cortar, costurar, fazer os acabamentos. Assim, fui não só tomando intimidade com a costura, como aprendendo mesmo a costurar. O que eu não entendia, eu perguntava. E até hoje parece que estou ouvindo ele me dizer: "Sonia, você pergunta muita coisa ...!"
    " Quando achei que já dava para arriscar cortar (modelar) alguma peça, eu lhe pedi tecido emprestado. E ele colocou seus tecidos à disposição, desde que, depois, eu pagasse pelos metros que havia usado. Fui pegando alguns tecidos e cortando-os. E resolvi fazer algumas roupas para minhas amigas, porque assim treinava a modelagem e a costura e ainda arrumava o dinheiro para pagar, ao meu tio, os tecidos. Deu certo, pois minhas colegas de turma gostavam das roupas e as compravam. Dava para eu pagar os tecidos que meu tio me emprestava e ainda ficar com um troco."
    " Quando me casei, fiz, sozinha, todo meu enxoval. Tive dois filhos e eu mesma fazia os uniformes deles do colégio. Como aprendi na prática, sempre fui intuitiva, ia testando: cortava a roupa, provava na pessoa, fazia os consertos/acertos necessários, voltava a fazer mais uma prova. Ia errando e acertando, aprendendo com os erros."
    " Mas todo mundo gostava tanto das roupas que eu fazia , sobretudo, para mim e para meus filhos que acabei abrindo, há 29 anos, uma confecção. Era uma confecção pequena, com apenas duas máquinas de costura, duas costureiras contratadas. Quem modelava tudo era eu, com o método "acerto/erro, prova" que havia aprendido, quando pequena, no atelier do meu tio-avô."
   "  As pequenas coleções feitas por mim eram compradas por uma loja do bairro do Méier, zona norte do Rio de Janeiro. Depois passei a abastecer duas prontas-entregas em Ipanema e no Leblon, zona sul carioca. Prosperei, cresci, passei de uma sala de trinta metros quadrados para uma  que tinha o dobro do tamanho e ficava em frente à estação de trem do Rocha, zona norte do Rio de Janeiro."
    " O lucro era bom, logo comprei um carro zero quilômetro à vista. Aí um cunhado meu entrou como sócio e o negócio começou a dar errado. Passei a ter problemas com a mulher dele, minha cunhada, com a minha sogra e também com o meu marido. Sociedades familiares, tão frequentes na área de moda no Brasil, são complicadas. Resolvi sair fora e a empresa acabou falindo."
    " Entrei para dar aula de modelagem na Escola de Moda Candido Mendes em 1991. Tinha como material didático as apostilhas de um curso que havia feito no FIT (Fashion Institute of Technology) em Nova York, EUA. E fiz minhas primeiras apostilhas inspiradas na técnica de modelagem ensinada no FIT, célebre escola de moda norte-americana. Depois, resolvi desenvolver uma teoria de modelagem que traduzisse os gostos e as necessidades da mulher brasileira."
    " Pegamos, então, tabelas da Itália, França, Inglaterra e dos Estados Unidos (países que possuem uma longa tradição no estudo da moda) e realizamos uma pesquisa de métodos utilizados. Assim nasceu o nosso livro "Modelagem Industrial Brasileira", editado em 1998 pela editora Letras & Expressões -RJ, e que é distribuído e adotado em todo território nacional. O livro é bem técnico, objetivo. Em suas páginas, tudo é cálculo e precisão, o que permite transformar pedaços de pano em estilo."
   "  Junto com os livros nasceram as réguas: uma flexível para medir as curas do corpo feminino; uma outra para medir os quadris; outra para medir o espaço entre as pernas, realizando a interpretação de uma curva longa.  E há também, uma régua para cavas e decotes, que possui pontas que são destinadas a "medir" com exatidão os cantos."
    " A cada seis meses, vendemos duzentos e cinquenta kits de réguas. O público-consumidor deste material didático, no Rio de Janeiro, são os (as) alunos (as) das universidades Cândido Mendes, Veiga de Almeida e Estácio de Sá, todas com cursos de dois a três anos na área de moda. Nos demais Estados quem compra o livro e as réguas são costureiras e proprietárias de pequenas e médias confecções."
     "A simples existência deste meu livro didático sobre modelagem tem me ajudado muito em sala de aula, pois as alunas (a maioria são mulheres) entram na escola sem noção alguma sobre , por exemplo, a largura de uma cava, o tamanho de uma cava, etc."
    " Num futuro próximo pretendo lançar um livro de exercícios e um livro dedicado à modelagem da moda-praia (carro-chefe da moda nacional) e um livro sobre modelagem masculina."
    " O meu dia-a-dia profissional é puxado: ministro uma série de aulas e tenho um atelier em casa onde desenvolvo uniformes para as empresas. Faço , sob encomenda, vestidos de noiva e de damas-de-honra e roupas para formaturas. Desenvolvo modelagens para confecções; crio figurinos para teatro, cinema e televisão."
    " Para dar conta de tantos compromissos, conto com a colaboração de ex-alunas que trabalham, como colaboradoras, no meu atelier que ocupa grande parte da sala de visitas do meu apartamento de três quartos, no bairro de Copacabana. Meu filho, Guilherme, formado em administração de empresas, é quem controla o caixa desta micro-empresa que completa o nosso sustento."
     
     Antes de Sonia Duarte e Silvia Saggese editarem, em 1998, um livro sobre modelagem "mais próximo do possível "da realidade do corpo da mulher brasileira só houve um profissional que ousou criar uma modelagem nacional. Refiro-me a Gil Brandão, que em 1962 lançou um livro contendo as suas lições de modelagem que eram semanalmente publicadas no "Jornal do Brasil".

(texto-exercício  que foi incluído na minha dissertação de mestrado na UFRJ em 2002 - professora-orientadora Raquel Paiva)

     

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